As línguas de sinais muito provavelmente pré-datam o registro escrito por serem efêmeras, mas esse mesmo fato significava que corria o risco de existir à custa da perpetuidade e da tradição [0]. Para resolver isso, a visão moderna diz que as linguagens gestuais exigem uma cultura, uma segunda geração e uma comunidade para se desenvolverem plenamente. A Língua de Sinais Brasileira, ou Libras, que foi oficializada em 2002, atualmente tem todos os três componentes, mas nem sempre foi assim. A história de como Libras surgiu remonta ao início da metade de 1800.
Em 1835, um congressista e juiz da Suprema Corte da Bahia, Cornélio Ferreira, apresentou um projeto de lei sem sucesso que teria criado a posição de professor de nível elementar para estudantes surdos-cegos e mudos em todas as províncias. Vários anos depois, em 1841, uma lei imperial ordenou que o primeiro asilo - o Hospício Dom Pedro II - fosse construído para abrigar pessoas “mentalmente alienadas” devido ao fato de que a deficiência intelectual na época era considerada uma forma de loucura. Na verdade, qualquer pessoa considerada deficiente mental ou física foi proibida de exercer quaisquer direitos políticos pela primeira constituição do Brasil em 1824. Dito isso, os médicos empregados no asilo, após sua abertura oficial em 1852, tinham como objetivo tentar reabilitar os pacientes. As estatísticas mostram que em 1856, durante um momento de grave superlotação do asilo, havia 1.110 presos para apenas 300 leitos. Do total, 508 receberam alta, deixando 273 que não puderam ser reabilitados e 329 que acabaram falecendo [2].
Localizado na Urca, o asilo ofereceu terapia ocupacional a seus pacientes não violentos, como artes e ofícios, bem como atividades artesanais, enquanto os pacientes violentos foram trancados com camisas de força (provavelmente devido à natureza rudimentar do campo da farmacologia na época). Para aqueles com meios financeiros, eles poderiam se admitir e pagar por acomodações com certas vantagens, como um quarto sem companheiros de quarto [2].
Apenas três anos após a abertura do asilo, em 1855, Dom Pedro II convidou Ernest Huet, um defensor francês da comunidade surda que também era surdo, para vir ao Brasil. Huet apresentou ao Imperador, cujo próprio neto supostamente tinha problemas auditivos, um plano para que uma escola seja construída no Rio. Dois anos depois, o primeiro instituto para surdos do Brasil - agora chamado de Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) - foi fundado, onde eles usaram a Língua de Sinais Francesa (ou LSF) e a misturaram com os sinais brasileiros existentes para criar Libras.
Da matéria inicialmente ensinada na escola de Huet, nenhuma incluiu o ensino verdadeira da língua de sinais, embora houvesse uma aula de leitura labial. No entanto, um dos diretores da escola na maior parte da segunda metade de 1800 escreveu dois relatórios afirmando que a língua de sinais realmente começou a ser usada. Abaixo, pode-se tomar nota das diferenças gerais no currículo na escola de Paris em relação à brasileira.
No século XIX, os estudantes surdos, ao se formarem, muitas vezes retribuiram, se tornando envolvidos na educação dos outros colegas da comunidade. O que Ernest fez no Brasil foi semelhante ao que o educador americano Thomas Hopkins Gallaudet fez nos EUA cerca de 50 anos antes, depois de ter estudado as práticas pedogógicas no Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris. Essa conexão francesa é a razão pela qual a Língua Americana de Sinais (ou ASL) e Libras são ambas baseadas na LSF. Ernest, na verdade, retribuiu mais de uma vez, já que durou apenas cinco anos na escola brasileira antes de ir para a Cidade do México e repetir o processo.
Educação de Surdos e Reconhecimento de Libras
Antes de 1700, os indivíduos que não conseguiam ouvir ou falar eram considerados não ensináveis e incapazes de formular pensamentos, muito menos ter qualquer tipo de vida produtiva. Tal ponto de vista precede o modelo médico de surdez que analisa maneiras de curar a “deficiência” e pode ter suas raízes parcialmente no fato de que os exploradores europeus usaram sinais de mão para afetar o comércio e a comunicação com os ameríndios “primitivos”.
O educador francês Charles Michel de l'Épée liderou o desenvolvimento do LSF através da padronização de uma proto-versão da linguagem que, em última análise, foi excessivamente complexa e não muito útil. Ainda assim, ele começou a primeira escola gratuita do mundo para surdos em 1760 e conseguiu atrair multidões em muitas manifestações públicas que realizou, o que provou que os surdos poderia, de fato, aprender.
Duas abordagens diferentes eventualmente surgiriam, conhecidas como manualismo (linguagem de sinais) e oralismo (leitura labial, fala e mimetismo). Por quase um século, a partir da década de 1860, a abordagem oralista foi preferida pelos educadores na maioria dos países, com a assinatura vista como algo que segregava a comunidade surda da vida cotidiana. O Congresso de Milão em 1880 foi um ponto de virada para colocar o oralismo na vanguarda. Mesmo no INES houve um longo período, que durou a maior parte do século XX, onde o método manualista era principalmente ou completamente proibido - embora com alguma resistência:
Os sinais nunca desapareceram da escola, sendo feitos por debaixo da própria roupa das crianças ou embaixo das carteiras escolares ou ainda em espaços em que não havia fiscalização. [5]
Eventualmente, uma abordagem bilíngue que utiliza ambos os métodos prevaleceu nas décadas de 1970 e 1980. Conhecida como comunicação total, ela levou à legitimação da Libras, embora através de muita defesa e ação social pela comunidade surda.
Apesar da educação surda no Brasil ter suas origens nos tempos coloniais, foi apenas com a Constituição Brasileira de 1988 que qualquer tipo de legislação foi codificada em lei para fornecer programas que atendem a pessoas com deficiência. A lei incluía portadores de deficiência sensorial mas não fez menção a Libras. Ele especificou que aqueles com deficiência não devem ser impedidos por obstáculos arquitetônicos (considere um prédio sem rampa para usuários de cadeiras de rodas), o que obviamente não se aplica à comunidade surda.
Três anos depois, Minas Gerais aprovou uma lei reconhecendo Libras no estado, que estava dois anos à frente do projeto de lei proposto pelo congressista Sarney Filho em 1993. Este último teria reconhecido oficialmente Libras em nível nacional e fornecido meios para que aqueles que o usam fossem adequadamente acomodados ao lidar com o governo federal. Em 1996, a senadora Benedita da Silva assumiu as rédeas, inspirada pela proposta anterior, e apresentou outro projeto de lei que eventualmente se tornou a Lei nº 10.436 em 2002 [6].
Desde então, o Brasil tem avançado na acessibilidade e educação para surdos, incluindo o reconhecimento de Libras nos currículos, a regulamentação de tradutores/intérpretes de língua de sinais e a obrigatoriedade da educação bilíngue.
A assinatura amadurece
Desde o primeiro livro sobre Libras, intitulado Iconographia dos Signaes dos Surdos-Mudos foi publicado em 1873 por um estudante surdo, a linguagem de sinais e, neste caso, a própria Libras se destacou. Embora haja uma abundância de estudos e material didático disponível, é difícil definir o número de pessoas surdas no Brasil que usam - ou precisam usar - Libras. Em um estudo de 2019 publicado pelo IBGE, o departamento de estatísticas do Brasil, afirma que cerca de 22,4% dos brasileiros com problemas auditivos graves, entre 5 e 40 anos, sabem usar Libras. Entre aqueles que não conseguem ouvir, 35,8% sabem assinar [7*]. Esses números provavelmente estão longe do número de “10 milhões de usuários” que muitas vezes circula on-line [8].
Tão importante quanto quem o usa é saber como ele é usado. As línguas de sinais não operam apenas em um plano horizontal entre o manualismo e o oralismo. Além dos sinais manuais, existem outros componentes, como expressões faciais, movimentos corporais, orientação espacial, iconicidade (sinais que representam seu significado), marcadores temporais e até sistemas para escrever línguas de sinais.
As línguas de sinais têm outras características interessantes que merecem menção. Uma é a ordem das palavras. Enquanto o português é orientado para SVO (sujeito-verbo-objeto) e, portanto, linear, Libras é - como uma língua espacial - tanto SVO quanto SOV. Outro recurso, embora não específico para a assinatura, é a estrutura tópico-comentário, onde o tópico principal é dado para orientar o destinatário e, em seguida, esse tópico é comentado. E a terceira característica interessante é o uso de um predicado classificador:
Os predicados classificadores (CLPs) em línguas de sinais são sinais verbais nos quais o movimento da mão expressa o movimento ou a localização de algum objeto, enquanto a forma da mão se refere a algumas propriedades formais ou semânticas desse objeto. [9]
Por fim, existem maneiras de expressar línguas de sinais no papel, desde a notação Stokoe até o Sistema de Notação de Hamburgo e SignWriting, entre outros. Desenvolvido na década de 1970 pela dançarina americana Valerie Sutton, o SignWriting usa principalmente representações visuais de sinais de mão. No Brasil, é ensinado na Universidade Federal de Santa Catarina e usado pela comunidade surda em São Paulo, conforme codificado no Dicionário Brasileiro de Língua de Sinais [10]. Em 2015, houve até uma dissertação em Língua de Sinais Brasileira, usando SignWriting, aceita para um mestrado em linguística [11].
Conclusão
Com mais de 165 anos de existência, é seguro dizer que o INES é a razão - pelo menos historicamente - de que os membros surdos da sociedade no Brasil não acabaram passando a vida inteira em um asilo. O instituto ofereceu uma saída e, eventualmente, um caminho a seguir. Não é de se surpreender por que o dia nacional dos surdos é comemorado no mesmo dia da fundação da instituição - em 26 de setembro. O prédio do governo é até um patrimônio cultural tombado que, hoje, abriga muitos programas.
O INES oferece treinamento em pedagogia para profissionais surdos e não surdos (incluindo cursos de idiomas gratuitos), avaliações audiológicas, detecção precoce de perda auditiva e orientação de cuidador para a comunidade. Também realiza congressos, seminários, fóruns e publica pesquisas. Por quase uma década, a partir de 2013, a TV INES teve um canal de TV brasileiro com todos os tipos de conteúdo voltado para a comunidade surda.
Em suma, a história, a legislação e as iniciativas educacionais em torno da língua de sinais brasileira mostram o quão desafiador pode ser o caminho para o reconhecimento. Não é apenas uma história de desenvolvimento da linguagem, mas também de aceitação social apoiada pela política governamental. Libras é um elemento vital da comunicação cotidiana para a comunidade surda do Brasil, bem como um tópico que merece mais estudo e apreciação.
Notas Adicionais
0 - Sinais familiares
Fontes
1 - Iconographia dos Signaes dos Surdos-Mudos
2 - Hospício de Pedro II - da construção à desconstrução
3 - Instituto de Surdos-Mudos: Relatório do Diretor
4 - L’institution nationale des sourds-muets de Paris
5 - Libras: A Língua de Sinais dos Surdos Brasileiros
6 - 20 anos do reconhecimento da LIBRAS: o que aconteceu na educação das pessoas surdas?
7 - Um em cada quatro idosos tinha algum tipo de deficiência em 2019
* Enquanto o infográfico mostra 35,8%, o texto após o infográfico afirma:
“Entre essa faixa etária, das pessoas que relataram muita dificuldade ou não conseguiram ouvir, 22,4% sabiam como usar Libras. Entre as pessoas entre 5 e 40 anos de idade que não conseguiam ouvir, 61,3% sabiam essa língua.”
8 - O mito dos 10 milhões de surdos usuários de Libras
9 - Argument structure of classifier predicates in Russian Sign Language
10 - Brazilian Sign Language Dictionary
11 - A escrita de expressões não manuais gramaticais em sentenças da Libras pelo sistema SignWriting