Em meio ao milagre econômico do Brasil de 1968 a 1973, surgiu uma ideia ousada para atrair ondas de capital estrangeiro. O efêmero Estado da Guanabara - que compreendia o Rio de Janeiro e existiu de 1960 a 1975 - buscava recuperar parte de sua influência política e econômica perdida após Brasília se tornar o "queridinho" do país.
O chamado Rio-dólar (originalmente nomeado Latin-dollar) permitiria que instituições financeiras operando na Guanabara aceitassem depósitos em moeda estrangeira de não-residentes. O instrumento financeiro rivalizaria com o Eurodólar e o Ásia-dólar e transformaria a Guanabara em uma Londres, Frankfurt, Zurique ou Cingapura. Como o Eurodólar - dólares americanos offshore mantidos em bancos estrangeiros - esses depósitos poderiam circular livremente, com menos regulamentações, desempenhando um papel importante nos mercados globais ao facilitar o comércio internacional, empréstimos e investimentos.
Com esses dólares denominados em US$, tanto banqueiros quanto empresários de toda a América Latina poderiam investir em multinacionais ou fornecer empréstimos de curto prazo com taxas de juros favoráveis. Foram feitas conversas nos mais altos níveis para angariar apoio federal, criar estruturas legais para garantir a viabilidade, mas a implementação do Rio-dólar só funcionaria se o Brasil fosse estável em termos de sua economia, incluindo o ambiente regulatório e a inflação interna.
Em uma época em que a nata da sociedade sonhava com viagens mais rápidas que a velocidade do som a bordo do suposto Concorde, o jornalista Paulo Rehder deu uma visão do futuro financeiro em um artigo de 1971 para a Manchete:
Um Boeing-747 da VARIG aterrissa no aeroporto supersônico do Galeão. Um de seus passageiros, embarcado em Nova lor-que, é Mr. Strong. Trata-se, à primeira vista, de um americano comum. Sua bagagem parece a de um turista: uma mala executiva cheia de documentos e uma pequena valise de roupas. Poucos notam a sua presença. Um diretor de banco, acompanhado de uma loura secretária bilingüe, o espera com uma limusine preta e, antes mesmo de deixá-lo no Rio-Hilton, leva-o à sede do banco.
E que Mr. Strong traz um depósito em dólares, para a sua conta n.° 2.004. Está interessado em aplicá-los no mercado latino-americano, através do fundo de investimentos do banco. Dois dias depois, em companhia das mesmas pessoas Mr. Strong retorna ao aeroporto e toma um avião para Cingapura, onde também tem negócios. Deixa no Rio as saudades da secretária e 100 milhões de dólares.
A loura retoca a maquilagem e o diretor consulta o relógio. Lá fora, a limusine preta, com o chofer fardado, espera. É que não tardará a chegar Dom Paco Jimenez, que vem da América Central, trazendo cinquenta milhões de dólares. Esta é uma possível cena da vida futura, no Rio de Janeiro. Ainda não acontece, pois não temos o aeroporto supersônico, nem o Rio-Hilton está inaugurado. Mas tudo isso virá a seu tempo, como poderá também vir o Rio-dólar, sonho das classes produtoras cariocas [1].
Logo após a proposta do Rio-dólar, toda a boa vontade e promessa contidas no milagre econômico do país evaporaram. A crise do petróleo de 1973, o aumento da dívida externa e a crescente inflação resultaram em uma seca prolongada que incluiu a crise da dívida dos anos 1980.
Da visão do futuro, a única coisa que ainda permanece de pé é o Rio Hilton, inaugurado em 1975. O Estado da Guanabara foi incorporado ao Estado do Rio, a Varig teve suas operações suspensas, os jatos supersônicos se tornaram insustentáveis1 e o sonho do Rio-dólar não decolou. Basta dizer que o Sr. Strong desviou seu caminho e levou seu dinheiro para outro lugar.
A América Latina ainda usa o dólar americano para o comércio internacional, mas um sistema financeiro completo baseado nele, como o proposto, ainda não existe (embora o Rio-dólar tenha sido discutido novamente* no início dos anos 1980). A história do Rio-dólar reflete uma tendência maior da ambição latino-americana: grandes ideias sufocadas pela volatilidade econômica. No entanto, o papel do Brasil no BRICS, as discussões sobre uma moeda de comércio proposta com a Argentina chamada “sur” e seu movimento em direção a uma moeda digital de banco central, o Drex, mostram que o país ainda está tentando remodelar seu futuro financeiro.
Informação adicional
1 - O mercado de euro-moedas e o rio-dólar
2 - Rio-dólar: a ideia resiste
Fontes
1 - A capital do Rio-Dólar (Manchete, 1971)
2 - Vantagens do Rio-Dólar (Revista das Classes Produtoras, 1971)
Boom revela 'Boomless Cruise' para uma viagem supersônica tranquila (Fev/2025)