Roque Santeiro, Antes & Depois
A censura de uma telenovela durante a ditadura no Brasil
O ano era 1985 quando Dias Gomes, o importante dramaturgo brasileiro, finalmente teve sua telenovela Roque Santeiro autorizada a ser exibida. O Brasil acabava de sair de uma ditadura militar de 21 anos, durante a qual o Ato Institucional Número 5 (AI-5) foi a ferramenta mais repressiva do regime. Promulgado em 1968 em resposta à crescente oposição - incluindo um grande protesto no Rio de Janeiro após o assassinato de um estudante pela polícia militar - o AI-5 concedia ao governo autoridade irrestrita para censurar músicas, filmes, peças teatrais e telenovelas consideradas subversivas aos valores políticos e morais. Roque Santeiro havia sido originalmente programada para estrear em 1975, mas, horas antes de sua exibição, a TV Globo recebeu uma ordem proibindo sua transmissão.
A telenovela era uma adaptação de O Berço do Herói, uma peça escrita por Dias Gomes em 1963 e banida durante a ditadura. A justificativa do governo para a censura foi que o show continha “ofensas à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja.” No entanto, a verdadeira razão ficou clara depois que as autoridades interceptaram uma gravação de uma conversa telefônica entre Gomes e o historiador Nelson Werneck Sodré. Durante a conversa, Gomes admitiu abertamente: “Eu estava modificando algumas coisas, fazendo uma tapeação para a censura não perceber que era a mesma peça!” O regime militar estava monitorando o telefone de Sodré, e a revelação confirmou suas suspeitas - Roque Santeiro não passava de uma versão disfarçada de O Berço do Herói. A telenovela foi imediatamente cancelada.
Naquela noite, o âncora do Jornal Nacional, Cid Moreira, leu uma declaração oficial do presidente da Globo, Roberto Marinho, anunciando a proibição. Foi um momento raro em que a censura estatal foi explicitamente reconhecida no ar:
A novela Roque Santeiro não será transmitida, devido a uma decisão do governo federal que determinou sua suspensão. A Rede Globo, por obrigação, cumpre a ordem.1
Nos bastidores, a rede foi lançada no caos. Dez episódios inteiros já haviam sido filmados, com cenas de outros 30 gravadas2. Cenários haviam sido construídos, material promocional liberado e milhões de telespectadores aguardavam a estreia do programa. A Globo, sem preparo para o cancelamento repentino, teve que correr. Primeiro, exibiu uma reprise condensada de Selva de Pedra (1972) antes de lançar Pecado Capital (1975)3, que, apesar de ter sido produzido sob extrema pressão de tempo e utilizando alguns dos mesmos cenários de Roque Santeiro, acabou se tornando um marco na televisão brasileira. O estresse da situação foi tão intenso que o executivo da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (Boni), foi brevemente hospitalizado com sintomas de um infarto.
Um grupo de 23 atores foi a Brasília para protestar contra o cancelamento e entregar uma carta ao presidente Ernesto Geisel. Após não serem recebidos, o líder do grupo, Paulo Gracindo, leu a carta em voz alta, lamentando:
O país vive uma triste contradição: enquanto a sociedade se moderniza, a cultura, por efeito de um código de censura anacrônico e implacável, se avilta, se desfigura e se desnacionaliza.
Roque Santeiro espelhava o arco da ditadura militar: censurado como peça em 1965, banido como telenovela em 1975, e finalmente transmitido em 1985 após a queda do regime. Sua trama deixa claro por que o regime militar o considerou perigoso. Ambientada na cidade fictícia de Asa Branca, no empobrecido Nordeste4, ela acompanha o retorno de Roque, um homem que havia sido dado como morto 18 anos antes e era adorado como santo. Seu suposto martírio havia sido explorado pelas elites locais - o prefeito, um poderoso fazendeiro e a igreja - para controlar e lucrar com o povo da cidade. A novela se tornou um marco da história da televisão, servindo como uma sátira à exploração política e comercial da fé popular. Quando Roque reaparece vivo, sua mera existência ameaça desmantelar o poder desses grupos. As paralelas com o cenário político real do Brasil eram inconfundíveis: um herói retornando para desafiar os mitos usados para justificar um sistema injusto. O regime não queria que milhões de brasileiros vissem essa mensagem sendo transmitida nas telas5.
Quando Roque Santeiro finalmente foi ao ar em 1985, teve que ser completamente refeito6, com um elenco diferente, já que a versão original havia sido engavetada. No entanto, cinco atores da versão censurada receberam novos papéis na regravação, mantendo uma ligação entre as duas produções. À medida que o Brasil transitava para a democracia, a novela se tornou o programa mais assistido da história da televisão brasileira. Naquele momento, a censura da década anterior parecia quase absurda em retrospecto. Em uma entrevista de 1992, Dias Gomes até riu ao lembrar como sua tentativa de enganar os censores acabou dando errado.
Agora, com a chegada de 2025, marcando o 50º aniversário da versão original banida, vale a pena refletir sobre o quanto realmente mudou. O mais interessante é como, durante a ditadura, o governo temia o poder da televisão para moldar a percepção pública, mas hoje, em um Brasil democrático, talvez não se discuta o suficiente como as telenovelas influenciam seus públicos. Se Roque Santeiro teve que ser suprimido para evitar que inspirasse resistência, que narrativas estão sendo promovidas agora, e a quem elas servem? Talvez o Brasil ainda precise de um Roque Santeiro da vida real para salvar os telespectadores.
Em uma entrevista de 1992 com a Globo - uma rede que continua sendo uma das criadores de mitos da cultura brasileira - Dias Gomes reafirmou: "O Brasil não pode viver sem mitos", uma afirmação que ressoa hoje tanto quanto na época da ditadura.
Música por Djavan, xilogravuras por J. Borges
Fontes
1 - O dia em que Cid Moreira teve de anunciar veto da ditadura a novela ao vivo
2 - Roque Santeiro: Memória Globo
3 - Roque Santeiro completa 50 anos em 2025; veja imagens e curiosidades
4 - "Roque Santeiro" e a Ditadura Militar Brasileira em Três Atos: A Política por Trás das Telas
5 - Com novela das oito censurada, Globo exibiu reprise reeditada em 1975
Na pesquisa, perdi a versão original então essa citação é uma retrotradução
Algumas fontes dizem que 30 episódios completos foram gravados, outra disse 36. Dias Gomes disse que 52 episódios foram escritos e 20 foram vistos pelos censores.
as duas novelas da mulher do Dias Gomes, a Janet Clair
gravado em Guaratiba (Rio), e modelado em Juazeiro do Norte (Ceará), Porto das Caixas (Rio) e Aparecida (São Paulo).
O Regime fez da entrega de um roteiro completo uma pré-condição para dar luz verde às futuras novelas