Entre 1890, após a proclamação da República do Brasil, e os últimos anos da década de 1920, as referências à capoeira poderiam ser encontradas, não na literatura cultural da época, mas no Código Penal da República. O próprio nome capoeira tornou-se um termo pejorativo aplicado a vagabundos, ladrões e indesejáveis, mas voltaremos a esse tema mais tarde, enquanto damos uma olhada nas possíveis etimologias da palavra.
Etimologia
A palavra “capoeira” foi registrada pela primeira vez em 1712 por Rafael Bluteau em um dicionário que ele fez chamado “Vocabulário Português e Latim”, embora sua etimologia exata seja desconhecida. Existem várias teorias, sendo a primeira delas proposta pelo autor brasileiro José de Alencar em seu romance Iracema, quando ele sugeriu que capoeira é Tupi para caa-apuam-era (uma pequena floresta virgem). Outra teoria de um lexicógrafo brasileiro dizia que a palavra estava relacionada ao nome de uma pequena perdiz e à maneira distinta como o macho defendia seu território.
Ainda outra teoria vem do autor Brasil Gerson, que acreditava que capoeira se referia a grandes cestas para guardar lenha e carregar galinhas que os escravizados transportavam para o mercado. Durante suas pausas, eles se divertiam jogando capoeira1. Da mesma forma que o –eiro em brasileiro está associado a uma profissão (aqueles que transportavam o pau-brasil), o nome das grandes cestas pode ter sido passado para aqueles que as transportavam.
Embora todas essas explicações possíveis sejam boas e interessantes, o cenário mais provável para a origem da palavra é que seja simplesmente uma mistura dessas teorias. Da mesma forma que usamos frases familiares, mas opostas, para qualquer situação que precise de uma solução (“duas cabeças pensam melhor que uma”, mas também, “muitos cozinheiros estragam o caldo”), cada explicação possível para a etimologia de capoeira poderia muito bem ter sido uma crença popular entre diferentes grupos sociais. Devemos lembrar, porém, que esses eram tempos tumultuados para os escravizados no Brasil e, assim como o exemplo do “-eiro em brasileiro”, talvez os escravizados procurassem liberdade ao escapar para as pequenas áreas de floresta que os ameríndios chamavam de capoeiras, e assim os escravizados tomaram o nome das áreas onde normalmente se escondiam.
Caminho para a Criminalização
A resistência das comunidades quilombolas ao longo da costa nordeste do Brasil no século XVIII mostrou o quanto a capoeira era importante. Quando os holandeses invadiram, milhares de escravizados aproveitaram a confusão e fugiram de seus senhores. Formaram grupos chamados maltas para se defender e proteger seu território com a capoeira.
O Rio de Janeiro também desempenhou um papel importante na história da capoeira, já que a maioria dos escravizados no Brasil residia lá (ou na Bahia). Uma história sobre capoeira e Rio não estaria completa sem mencionar o Major Vidigal, dito ser fortiter in re, suaviter in modo2.
Na década de 1820, durante o que foi o Primeiro Império do Brasil, o principal executor da força policial colonial carioca, e um dos homens mais influentes e poderosos no Rio de Janeiro, era o Major Miguel Nunes Vidigal. Sendo tão importante, ele frequentemente recebia presentes, alguns deles luxuosos, como a terra onde hoje existe uma favela.
Monjes beneditinos deram ao Major Vidigal uma vasta área de terra onde havia um mosteiro, que se estendia de Dois Irmãos até o mar, onde ele construiu a Chácara do Vidigal.
A cidade do Rio, na época, assim como hoje, era dita ser caótica, onde o roubo e o assassinato passavam impunes. A resposta real foi o temido Major Vidigal, um homem alto de voz suave, mas um destruidor implacável de quilombos e caçador de escravizados fugidos, que não apenas odiava criminosos, mas também perseguia praticantes de candomblé, samba e capoeira. Isso geralmente se traduzia para os pobres e para aqueles de pele mais escura, que eram rotineiramente torturados sob suas ordens e pela sua mão, com um chicote que ele carregava consigo. A reputação do Major eventualmente deu origem à expressão lá vem o Vidigal, que passou a significar que algo terrível estava por vir, já que ele também era conhecido por sua “Ceia de Camarões”, uma sessão de tortura particularmente cruel, reservada principalmente para capoeiristas, os desempregados e, por relação, cantores de serenata.
Duas histórias de destaque vêm à mente sobre o tipo de pessoas que ele geralmente visava. Apesar de seu desgosto por esses tipos, diz-se que ele uma vez convocou com sucesso capoeiristas para combater uma revolta de mercenários alemães e irlandeses bêbados. Quanto aos cantores de serenata, ele uma vez disse a um juiz que a única coisa necessária para condenar a pessoa atualmente acusada era dar uma olhada em seus dedos, pois obviamente eram de um guitarrista!
Epigrama do famoso dramaturgo Artur Azevedo:
Naquelle tempo, Vidigal famoso,
Mais rancoroso do que um bicho máu,
Tinha jurado aos deuses seus prender-me
Para metter-me na policia o páu.
A prisão do Calabouço, localizada em uma instalação militar na base do morro do Castelo, em frente à baía de Guanabara, era o destino de qualquer escravizado que se comportasse mal ou fosse considerado como tal. De acordo com um acordo entre o Estado e os proprietários de escravizados, qualquer escravizado poderia ser levado lá para receber uma “chicotada corretiva” de 100 golpes por 160 réis. Os registros da prisão de 1857, por exemplo, mostram que 80 escravizados foram presos naquele ano por capoeira, enquanto apenas 30 foram presos por fugirem. Alguns anos depois, em 1862, as prisões relacionadas à capoeira totalizaram 404. Eventualmente, o que poderia ser considerado uma razão suspeita para a prisão tornou-se uma lei nacional assinada pelo presidente brasileiro Deodoro da Fonseca.
O capítulo 18 do Código Penal Brasileiro de 1890 trata do tema “Vagabundos e Capoeiras”. Sob o Decreto 487, pode-se encontrar o seguinte:
Decretos do Governo Provisório
Art. 402. Executar, nas ruas e praças públicas, exercícios de agilidade e habilidade corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem: atacar rapidamente, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesões corporais, provocar tumultos ou desordem, ameaçar uma pessoa específica ou inespecífica, ou incutir medo de dano: Pena - condenação à prisão de dois a seis meses.
Art. 403. Se você for estrangeiro, será deportado após cumprir sua pena [1].
Algo que pode ter contribuído para a criminalização da capoeira é a malandragem, que se refere a truques, malícia ou engano. Como arte marcial, ser capaz de enganar o oponente pode ser uma questão de vida ou morte, então se um escravizado pudesse fazer uma luta parecer uma dança, isso poderia ter sido muito vantajoso quando visto por, ou executado contra, seus senhores. De certa forma, foi a visão mais sombria de malandragem, como vista pelos que estavam no poder, que levou à criminalização da capoeira. A forma mais leve de malandragem que existia dentro do jogo, entre os jogadores, foi apenas um dos valores intrínsecos que ajudaram a dar à capoeira um nome melhor.
Bimba
No final da década de 1920, os tempos estavam mudando, e um homem percebeu isso. Seu nome era Manuel dos Reis Machado - mais conhecido como Mestre Bimba - e ao transformar a capoeira em um esporte que oferecia toda a formação e disciplina que qualquer outra atividade atlética exigiria, ele elevou o jogo e deu a quem o praticava algo de que se orgulhar.
Mestre Bimba fundou a primeira escola de capoeira em 1932, em Salvador, na Bahia, onde ensinou a Capoeira Regional. Ao fazer com que os alunos usassem roupas brancas e conquistassem seu nível de habilidade por meio de um cinto, Mestre Bimba deu à capoeira um apelo mais amplo junto ao público, desmarginalizando sua prática. A capoeira permaneceu ilegal até 1937, quando o presidente do Brasil na época, Getúlio Vargas, assistiu a uma demonstração na Bahia e aprovou a prática, levando à revogação da proibição.
Mesmo décadas após sua morte, Mestre Bimba continua sendo uma figura reverenciada, falada com profundo respeito e emoção pelos muitos alunos que treinou. Sua influência é inegável - hoje, a capoeira é praticada em mais de 150 países, em cinco continentes, um testemunho de seu legado.
Reconhecendo sua importância cultural, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) registrou a Roda de Capoeira como patrimônio cultural em 2008. Em 2014, a UNESCO consolidou ainda mais seu status, designando-a como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade [2]. O que um dia foi considerado crime no Brasil, hoje é uma das tradições culturais mais reconhecidas do país.
Falando em coisas que já foram crimes, o artigo relacionado sobre emprego no Brasil está aqui
Informação adicional
1 - Nota sobre o Calabouço
Fontes
1 - Anti-capoeira decree (Capítulo XIII)
2 - Brazil's capoeira gains UN cultural heritage status
jogar, no duplo sentido
Latim para "forte na ação, suave na maneira”